1984 é um livro fascinante em que George Orwell apresenta uma sociedade totalitária governada por uma instituição chamada Partido, estruturada com o propósito de impedir a ascensão social do proletariado, a parte pobre do povo que engloba cerca de 85% da população. Entre as muitas ferramentas que são utilizadas para fazer a manutenção desse controle social, a mais interessante é a Novafala.
É raro refletirmos sobre a importância das palavras na estruturação dos pensamentos. Estamos tão acostumados a empregá-las para expressar ideias para nós mesmos que podemos facilmente esquecer que as usamos para pensar e, portanto, que ideias são influenciadas pela língua.
A Novafala é um idioma que, no contexto do livro, está sendo construído e lentamente implementado com o intuito de limitar o poder racional da população, de forma a fazer com que seja impossível sequer pensar em ideias rebeldes. Logo, a adoção absoluta dela significaria uma vitória definitiva do poder totalitário, pois faria com que todos ficassem eternamente censurados dentro de suas próprias mentes, incapazes mesmo de sonhar com qualquer conceito determinado como impróprio pelo Partido. Esse é exatamente o oposto do objetivo de uma língua normal, que é formulada com o propósito de ser extremamente maleável, permitindo assim que o emissor possa expressar tão bem quanto possível qualquer pensamento ou situação que deseje.
“[Você] não compreende a beleza da destruição de palavras. Você sabia que a Novafala é a única língua do mundo cujo vocabulário encolhe a cada ano? […] Não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento?”
–1984, George Orwell.
O vocabulário de Novafala foi montado de forma a sempre atribuir significados muito específicos às palavras, englobando apenas conceitos que um membro “decente” do Partido poderia desejar expressar. Essa precisão das palavras impede que se chegue aos pensamentos impróprios através de meios indiretos, como analogias. Ao fazer com que cada palavra tenha um significado particular e muito bem definido, a Novafala prende seu usuário ao mundo concreto e a um universo limitado. É fácil perceber que a falta de subjetividade na língua alteraria por completo a arte, a filosofia e mesmo a ciência. Nossas ideias se tornariam muito mais limitadas, perderíamos grande parte do nosso poder criativo.
No livro, muitas palavras foram simplesmente destruídas por serem consideradas inúteis ou indesejáveis. Livraram-se dos sinônimos, pois estes traziam diversidade à língua. Palavras novas foram criadas, todas tão curtas e fáceis de pronunciar quanto possível. O objetivo dessas alterações era fazer com que o diálogo se tornasse uma ação quase mecânica, em que houvesse um esforço intelectual mínimo.
Palavras eram negativadas com a adição do afixo “des-”, fazendo com que não fosse necessária a criação, por exemplo, de uma palavra para “bom” e outra para “ruim”, haveria apenas “bom” e “desbom”. Dessa forma pode-se garantir que o antônimo da palavra significaria apenas seu oposto. A palavra “bom” nos conduz a um determinado conjunto de conceitos mentais, por outro lado, “ruim” nos leva a noções diferentes, que nem sempre seus opostos absolutos. Essas características enriquecem o idioma regular e consequentemente as mentes daqueles que são fluentes nele.
A “arte da destruição de palavras” é venenosa à mente dos falantes e ouvintes de Novafala. Suas ideias e opiniões se tornam simples e automáticas. Acaba-se com o raciocínio, com a reflexão e com a criatividade. Há, porém, uma importante lição a ser aprendida através desse experimento mental pelo qual Orwell nos conduziu. Tendo compreendido a importância da linguagem em nosso desenvolvimento intelectual podemos seguir o caminho oposto ao dos personagens de 1984, expandindo nosso vocabulário, estudando diferentes línguas e até criando palavras.
Existem diversas palavras que possuem definições encantadoras, que são esquecidas por que nos preocupamos muito mais em dominar o momento em que devemos usá-las do que com seus significados. Sabemos, por exemplo, que a palavra “agonia” pode ser utilizada como um sinônimo para dor e entendemos o contexto em que podemos usá-la, mas é muito mais interessante saber que essa palavra pode ser definida como “o sentimento que se tem antes da morte”. Esse conhecimento enriquece a expressividade da palavra, e acentua o seu peso.
A fluência em diversos idiomas, por sua vez, permite que se enxergue o seu próprio de forma completamente nova. Quando se tem acesso apenas à língua materna é difícil perceber todas as particularidades e vazios desta. É enriquecedor conhecer a flexibilidade do inglês, a sonoridade do francês, os aumentativos e diminutivos do português e a beleza das palavras compostas do alemão. Existem ainda incontáveis características fascinantes em outras línguas, e podemos aprender muito ao estudá-las.
Por fim, a construção de palavras, também conhecida como neologismo, é um processo comum entre autores. A língua é frequentemente incapaz de expressar conceitos com perfeição, principalmente quando se trata de emoções. A natureza complexa da mente humana nos condena a não conseguirmos nos expressar por completo, a não podermos explicar o que sentimos com exatidão. Talvez algum dia, se criarmos um idioma perfeito, seremos capazes de mostrar aos outros precisamente como nos sentimos, aí sim seremos verdadeiramente felizes. Afinal, o próprio Orwell escreveu que ser compreendido pode ser ainda mais desejável do que ser amado.
Para todos que se interessam pelo neologismo e que possuem um bom domínio do inglês, é altamente recomendado que se procure por “The Dictionary of Obscure Sorrows”, um site e canal no youtube que se compromete a preencher os buracos da língua, criando palavras novas com significados fantásticos. Sugiro começar por: “Onism: The Awareness of How Little of the World you’ll Experience”.